09 março 2012

Micarême – o baile


Ora, sabendo que o pandeiro salta de mão em mão, “tenham, V. Senhorias, um óptimo Micarême”, desejou o benigno prior, ao que a bela galega apenas apensou, “um mero serão dançante, quer o senhor prior dizer, com o beneplácito do guarda pretoriano, São Sebastião” – pois, pois…












E porque havia a bela galega de confessar ao prior uma falta que, em consciência, não iria cometer – mas que coisa…
Pois claro, não fazia o mínimo sentido. Deus era grande, “muito grande”, matutou ela, e – maior do que aquelas marronas bisbilhoteiras, saracoteando à volta do cura para que lhe caíssem em graça –, só Ele.
E em meia tarde de sábado, um dia resplandecente de sol de Inverno, um movimento desusado de seges, cruzando-se no largo da Matriz, com suas prezadas madames refasteladas, dava um ar mundano á cidade.
Passeara ela pelo agradável Aterro, dirigindo-se agora o casal, ao Suíço, “dois cafés”, pediu o marido, com os olhos postos numas estimadas beldades, que mesmo agora se haviam sentado, ali defronte, num banco da atractiva Varanda de Pilatos, dando um arejo de vistas no mar, “aqui os tem, senhor visconde”, aprestou-se o diligente empregado do mais cosmopolita café da baixa.
Do lado oposto, chegava o velho prior, encurvado, trajando uma batina de preto retinto, “com que então, fazendo horas para o baile, senhora Dona Dolores…”, observou o bondoso pároco, “é verdade, senhor prior, e a meio da Quaresma, mas o vestido é sóbrio…”, logo o prior abonou, “ainda bem, não imaginava outra coisa…”, e mais o reparo dela, “e, se bem me parece, a sua batina é nova…”, riram-se de vontade com a oportuna réplica.
Talvez que o bom homem com o aparte de “com que então, fazendo horas para o baile”, apenas quisesse observar um modo de dizer: que Deus estava tanto no alto dos céus, como depressa se precipitava, irrompendo de um mar de nuvens brancas e se punha aprumado no altar, e, não constando ser sócio do grémio, se trajava a rigor, envergava o seu fulgente smoking e, “cá estou eu no seu mui distinto Clube Micaelense, senhor Conselheiro!”.
Seria Pessoa para isso? – Apenas, coisas da Sua condição terrena.
Pelo sim, pelo não, a linda galega, bem desempoeirada para a época, “abanou-me a passarinha que o senhor padre-cura dissera umas inglesices…”, que era um desaforo haver um baile numa altura de profunda reflexão cristã, “quer-me parecer que são vozes mexeriqueiras”, interveio ela, despeitada com as ratas de sacristia.
O prior ajuizou o que de mais sensato teria para abonar, porventura algum impropério do desmiolado sacristão, até, quem sabe, um deslize do seu cura assistente – vá-se lá saber – puxou da caixinha de prata, tirou uma pitada de rapé, oferecendo-lhe, “aceita?”, ela agradeceu uma pitadinha, “se eu dissesse que o refinado Clube de V. Senhorias era um antro de gente sem moral, diriam, o prior é um impostor!”, assustou-se o visconde com o brado, e mais cordato prosseguiu, “e di-lo-iam com toda a razão, minha boa senhora Dona Dolores del Rio…”, e ela logo aditou, “e Velásquez…” – pois, pois…
Voltou o prior, paciente, “pois é… a vida tem dessas ratoeiras, armam-nas para apanhar o intruso, quer no distinto grémio de V. Senhorias, quer no belo lavatório de pedra trabalhada da sacristia da nossa vetusta igreja Matriz…”,
E a atilada Dona Dolores del Rio e Velásquez, levantando-se, “já se vão fazendo as tais horas…”,
Ora, sabendo que o pandeiro salta de mão em mão, “tenham, V. Senhorias, um óptimo Micarême”, desejou o benigno prior, ao que a bela galega apenas apensou, “um mero serão dançante, quer o senhor prior dizer, com o beneplácito do guarda pretoriano, São Sebastião” – pois, pois…

2012-02-08
Bento Sampaio

12 julho 2006

O balancé do chair-a-banc

Entrado no calhambeque do tempo, com a brisa fresca de um norte seco destes dias, e tendo esse bom caminheiro de calçada, o sol todo de fora, por companhia, dei comigo perdido em lembranças, já que, vendo muito pouco – essa saborosa vantagem de ter amigos que se plantam à minha frente, e me dizem, “oh Sampaio, sou eu” –, toda a atenção ia direitinha para o que mais gosto – o devaneio.
E, então, no dobrar de uma esquina desse tempo de bonança, estava aquele ar de frescura de uma manhã de domingo, naquele balancé de chair-a-banc do nosso primo Antonino, que Deus o tenha, a caminho de Vila Franca, em dia de procissão do Senhor da Pedra.
Lavado a preceito numa grande banheira de madeira, na noite de sábado, aliás um dia de lavações gerais lá em casa, e calçado e vestido a rigor, ia contente para a festa, com a promessa de ter uns “fresquinhos” de serrilha para o arraial.
Pode parecer, nos dias que correm, uma sensaboria gratuita, mas, nascido eu numa freguesia, longe daquilo a que, na altura, se chamava de conforto dos tempos – água canalizada e luz eléctrica –, andar de chair-a-banc era muito melhor do que ver as pessoas, a pé, a ficarem para trás.
O nosso primo não dava descanso ao macho, que, nos outeiros, subia mais devagar, para retomar, nas chãs, o trote cadenciado, que outra coisa não tinha a cavalgadura que não fosse o caminho pela frente, “eu sei o que ele quer...”, gracejou, e achegou-lhe, ao pêlo, três retinentes chicotadas.
“Vamos, ainda, muito a tempo”, disse meu pai, dando a entender que a alimária não merecia aquele castigo, “não, primo, ainda tenho mais um frete para a procissão”, respondia ele já a chegar à Vila.
Foi então que as ferraduras do macho começaram a matraquear, a compasso, na calçada, e o chair-a-banc, pintado de verde e com vivos vermelhos, fazia-se vistoso, entre os da sua classe, correndo na rua direita, com o nosso primo Antonino, de sorriso rasgado, aos comandos da besta.
E eu cavalgava a minha fantasia de ser um forasteiro com privilégios de poder ouvir as bandas, “é a nossa, as duas da Vila e a de Água de Pau”, acrescentou meu pai, que havia lido na “Crença”. A nossa, a “Lira do Sul”, garbosa, ombreava com as outras, no cortejo, coisa que me encheu de orgulho.
Era, de facto, um acontecimento maior para um rapazinho de dez anos, com a quarta classe feita, deliciado com as férias grandes, aquelas que sabiam mesmo a descanso.
Agora, estava à vista o meu primeiro ano no Liceu e mais um mês e tal para ver as canas a espigar e, sem remédio que me valesse, as férias a acabar.
O Liceu viria a ser o melhor tempo da minha mocidade. Aquele casarão, que eu avistara, só por fora, fascinava-me de tal forma, que eu não pensava noutra coisa, queria senti-lo por dentro.
Hoje, carrego as memórias de um ou outro “medíocre”, de muitos “suficientes”, alguns “muito-bons” e um “óptimo”, e, muito principalmente, a excelência de grandes amizades.
Olhando pelo retrovisor do tempo, e empoleirado nesse famoso calhambeque de lembranças gratas, não sei se é assim tão melhor o tal conforto dos tempos – água canalizada e luz eléctrica.
Agora, como se tudo pudesse voltar ao mesmo, o que mais gostaria era mesmo o balancé de um chair-a-banc, lá isso era, a caminho da Ponta Garça.

O comboio para as Furnas

Contava meu pai que o meu avô era uma criatura arrojada, empreendedora, sem impossíveis à sua volta; numa palavra, era um homem decidido.
Não satisfeito com os horizontes acanhados da sua terra, cedo desandou da Ilha, nos meados de 1903, com a promessa de voltar à Ponta Garça, folgado de vida.
Embarcando, de penedo, para a Califórnia, sem ainda conhecer o único filho, que havia de nascer uns bons meses depois, tinha que desbravar, à sua maneira, a grande pradaria americana.
Por lá ficou uns longos dezoito anos, embrenhado na criação de gado de vária sorte, voltando à terra, como previra, bem prevenido de fazenda e de alfaias agrícolas nunca vistas na pequenez da sua terra.
E logo arregaçou mangas para desmoitar os matos, que lhe vieram, por herança, dos seus, e mais uns cerrados a que deitou a mão, “terra quanta a vejas”, dizia ele ao filho.
Alentado o tempo todo, o sol não o apanhava na cama, pois tinha sempre um ror de coisas, que careciam da sua presença, “e isso, de levantar, ainda de madrugada, herdei dele”, dizia meu pai.
Os mais velhos da freguesia, ainda hoje o recordam pelas suas proezas. E foi isso mesmo que eu quis recordar de viva voz, do senhor João Cabral, “tinha a cabeça a fervilhar de ideias”, disse para começo de conversa, “imagina só aquela lembrança do comboio...”, começou por falar, assim dele, o irmão de meu sogro, a caminho dos oitenta e oito.
Acerquei-me melhor dele para nada perder da nossa conversa, e comentei benevolente “os anos não lhe pesam, senhor João”, e ele, ciente do tempo que já não volta, “vamos passando de um dia para o outro, meu querido Joãozinho, até Deus querer...”, e levou a mão à cabeça num jeito de tirar o chapéu, já que não o tinha, por respeito à palavra sagrada.
E, então, contou a história do comboio, com os retoques do tempo antigo, “o senhor Chiquinho Bento, teu avô, meteu-se com o tio Antonino da Lomba, e os dois engendraram e fizeram uma carruagem muito alta, com dois andares, atrelada a um carro de bois, que servia de rodeiro”. Sem perceber bem para que serviam, comentei admirado, “dois andares?!...”, e ele pronto na resposta, “o de cima, para a Banda de música, e o de baixo, para os convidados”.
Pensando eu que a Banda era reduzida, repisou entusiasmado, “qual quê, era a Banda toda, aquilo era muito grande, um louvar a Deus!”, mas ainda querendo saber mais, “e os convidados?...”, indaguei sempre curioso, como se nunca tivera ouvido aquilo. E ele prosseguiu com a explicação, “teu avô tinha cada ideia... lembrou-se de ir, numa embaixada, cumprimentar o senhor padre Botelho”, e olhou no longe, como quem espera alguém na curva do Caminho Novo, e rematou, “que a Ponta Garça se deve sentir muito honrada dele”.
E lá foram, num domingo de manhãzinha, depois da missa, para as Furnas, puxados pelas melhores duas juntas de bois, “uma da nossa casa e outra dele”, precisou. E lembrou-se de mais um pormenor curioso, “a Banda, ali à ponte, tocou um ‘Ordinário’, a despedir-se da Freguesia, por ordens dele; teu avô pensava em tudo”.
Imagine-se todo aquele aparato na subida íngreme do primeiro outeiro, “foi preciso que ele se descesse e tangesse a boiada, de aguilhada na mão, porque o Lomba não dava conta do recado, teu avô era um homem rijo”, concluiu simplesmente.
Com os bois sob controle, o comboio lá galgou o primeiro e todos os outros outeiros, até à estrada, "na vida, só se anda p'ra frente, Antonino!", foi o que se ouviu dele, voltando para o andar de baixo para junto dos convidados, “e quem eram eles?”, perguntei, “iam as gentes importantes da terra, cuido eu, pois aquilo não era uma embaixada para o senhor padre Botelho?”. Perguntei, ainda, se ele levara o filho, “não, teu pai andava a estudar lá fora”.
E, já agora, um aparte, porque não retira a Junta de Freguesia o senhor padre Botelho do silêncio soturno do cemitério das Furnas e coloca o busto de tão ilustre padre-poeta, no jardim junto à igreja, a que ele deu início?
E aquele homem, o senhor João Cabral, de uma ninhada de dez filhos, tio de minha mulher, de lembrança ainda bem arejada, muito amadurecido dos seus quase noventa, aprimorou, “hoje, faz-se melhor, certamente, até se vai à Lua; mas, no tempo que me criei, só o teu avô, o senhor Chiquinho Bento, para se lembrar de uma coisa assim – um comboio para ir às Furnas...”.

Um dia de muito mar

Estou de volta, como prometi, para recordar a galhardia do velho lobo do mar, do canal Flores Corvo, que é mestre José Augusto.
Se bem se lembram, o tal italiano, que se tinha metido em apuros, ao querer que aquela água milagrosa operasse maravilhas na sua calvície irreversível, voltando à guedelheira dos tempos de rapaz, tinha dado um grande show, ao desandar pelo calhau abaixo, aos gritos, “calienta! calienta!”
Agora, com a careca já arrefecida, e toda a marinhagem veraneante, transbordando alegria a jorros, o comandante capitaneava, como ninguém, a lancha para outras paragens da costa altaneira da ilha das Flores.
Que mais teria ele para nos mostrar, naquela tarde de sol escaldante e de tanto mar?
No meio daquele mar, agora calmo, imaginei os primeiros navegadores, debruçados na amurada, depois de ouvirem o gajeiro, empoleirado na gávea, gritar, “terra à vista! terra à vista!”. E eles, acabados de chegar, extasiados com a beleza daquela penedia negra, vestida de farrapos verdes, muito florida, qual menina envergonhada a mergulhar no oceano, para esconder-se daquela gente estranha, terão proclamado: “esta é a ilha das Flores!”.
E tinham razão, porque é, na verdade, uma terra de rara beleza. De costas escarpadas, salpicadas por tufos verdes, viu a natureza rasgar-lhe as entranhas, em vales profundos, e deu-se, de presente, naquela grande montanha, acima do mar erguida, para servir as naus em aflição.
A lancha contornava a costa devagar, “vão entrar, agora, dentro da ilha...”, disse o mestre, num largo sorriso, com a maior satisfação.
E era mesmo verdade; ele dirigia a embarcação para o interior de uma enorme gruta, escavada na alta penedia, às ordens de mares antigos, em fúria milenar. A semi-escuridão fazia lembrar que entrávamos numa catedral basáltica, de grandes abóbadas, a recomendar silêncio para aquele lugar sagrado.
O ruído surdo do motor, ecoando nos ressaltos da enorme concha rochosa – permitam-me o paradoxo – fez-me ouvir uma oratória de requintado gosto barroco, em acordes portentosos.
A intensa luminosidade de um dia cristalino, lá fora, dava agora lugar a um crepúsculo enigmático, caracterizado por uma ambiência mística. Ali ficámos algum tempo a admirar a grande maravilha, envolta numa penumbra excelsa, que mestre José Augusto nos presenteara.
Muito devagar, como quem se despede de Deus, ele fez voltar a lancha no interior da gruta, e outra suavidade, misturada de verdes de algas marinhas e do azul do céu, se foi revelando, à medida que saíamos e a claridade crescia.
E mais grutas houve para entrar e outras só para espreitar, que o porto de Santa Cruz estava prometido, “é só mais uma meia hora e estamos lá”, disse o timoneiro com a alma alegre. E todos irromperam numa grande salva de palmas.
Dá que pensar, agora que muitos anos se passaram.
Este reino – o das pérolas do colar açoriano – não é de reis, nem de príncipes, nem de fidalgos ociosos; é, sim, um reino das gentes, que muito deram do seu esforço, para termos tanta beleza por aí plantada.
E dos milheirais verdes a ondear na brisa suave de uma tarde ensolarada, dos montes e dos vales sempre verdejantes, das ribeiras de águas cristalinas a perderem-se por mares que sempre cruzámos, de tudo isso, façamos um palácio para os vindouros, ou melhor, a nossa casa para viver.

12 maio 2006

Pontos de lei

Sempre há cada caso...

Na antiga igreja do Convento da Graça, o ambiente era obviamente pesado, tenso, com argumentos esgrimidos ao rubro; como poderia aceitar-se que um homem, que se assumia como um extremoso pai de família, pudesse praticar uma tamanha agressão, de forma assaz violenta, e logo contra uma pobre criança indefesa... “V. Excelência, meritíssimo juiz, no seu alto critério de fazer valer a justiça, não deixará, seguramente, de tomar, na sua abalizada consideração, que isto é intolerável!”, e, nestes termos acalorados, aditou às alegações, “isso foi um verdadeiro atentado à integridade física de um miúdo!” prosseguia o advogado de acusação, junto da criança molestada, contra o desabrido sapateiro, que perdera a cabeça, atirando o martelo às canelas daquele badameco atrevido, que não se cansava de o assediar, “sapateiro bate sola...”, e isto dia após dia, “sapateiro bate sola...”, semana atrás de semana, “sapateiro bate sola...”, sempre que o rapazio saía da escola, e lá se foi uma canela esfacelada... apenas isso...
O juiz fez as suas anotações, “é tudo o que V. Excelência tem a argumentar?”, e o acusador, sentando-se, visivelmente convencido que a causa tombava para o lado do seu cliente, “por enquanto, meritíssimo, é o que se me oferece sobre este caso insólito e mesmo repugnante”, até que chegou a vez do juiz ouvir a outra parte da contenda, “tem a palavra a defesa”.
Levantou-se o defensor, deitou um olhar de compaixão por aquela abatida criatura, abalada com a prosápia do que proferira o acusador, e aproximou-se do desditoso, colocando a mão no ombro.
O sapateiro, cabisbaixo, o semblante grave, ainda achou forças para reunir todas as esperanças, para aquele momento de enorme expectativa, e esperou que ele iniciasse a sua dissertação, “meritíssimo juiz da Comarca de Ponta Delgada, excelentíssimo delegado do Procurador da República desta mesma Comarca de Ponta Delgada, caro e ilustre colega de acusação, senhoras testemunhas aqui presentes, ou a chegar a seu devido tempo, digníssima assistência...”, proferiu o causídico, calmamente e com a eloquência que o acto exigia, ele que manifestava o siso animado com a causa que iria defender, custasse o que custasse, e, para que nada ficasse sem as referências da praxe, puxou do lenço, num gesto meticulosamente medido, passou-o pela testa húmida, disposto a enfrentar uma maratona encarniçada de – agora, falo eu, agora falas tu –, e com todo o vagar, enxugou de novo o rosto.
Voltou, ainda mais viril, que a saudação era coisa de redobrada importância, pois assim fora educado com as boas maneiras dos seus, “meritíssimo juiz da Comarca de Ponta Delgada, excelentíssimo delegado do Procurador da República desta mesma Comarca de Ponta Delgada, caro e ilustre colega de acusação, senhoras testemunhas presentes, ou a entrar a seu devido tempo, digníssima assistência...”.
Ia a sentar-se, “Ah!, permitam-me, ainda...”, e ensaiou a roda do lenço, dando ainda mais ênfase à mesma encenação, “meritíssimo juiz da Comarca de Ponta Delgada, excelentíssimo delegado do Ministério Público desta mesma Comarca de Ponta Delgada, caro e ilustre colega de acusação, senhoras testemunhas presentes, ou a entrar a seu devido tempo, digníssima assistência...”, e sentou-se na maior bonança.
Correu pela assembleia um cochicho abafado e o martelo soou na mesa do juiz, “peço silêncio na sala”, e dirigiu-se ao defensor, “senhor doutor, passaram-se já uns bons minutos, sem sabemos, e muito menos tentar adivinhar, o que pretende V. Excelência trazer à colação”, e ouviu-se, novamente, um burburinho surdo, porventura de mofa, no auditório, e o martelo fez-se ouvir, “peço silêncio na sala”, com o acusador a endireitar-se, prevendo um desfecho favorável, “meritíssimo, eu já me explico...”, interveio o defensor, “V. Excelência tem a palavra”, apensou o juiz.
E aquela figura pequena, roliça, o andar periclitante, o olho de lince, pronto a abater a presa, num só golpe, “meritíssimo, gastei apenas uns poucos minutos a dirigir-me a V. Excelências, como manda a fina cortesia... e já V. Excelência denota impaciência...”, e o murmúrio voltou à sala, e outra vez o martelo deu sinal de si, “peço, de novo, silêncio na sala, V. Excelência pode prosseguir”, ao que o defensor, quase em jeito de conclusão, “que mais deseja que eu acrescento à colação, meritíssimo?”. Logo desafiou o acusador, “protesto!”, mas nada mais havia a fazer, porque o juiz já se levantara.
Prevendo todos – juiz, magistrados, testemunhas e assistência –, aonde aquilo iria parar, “está interrompida a audiência”, proclamou o juiz.
Algum tempo depois, voltou o magistrado, “a sentença será lida, na próxima sexta-feira, dia 28”, para, de seguida, abandonar a sala de audiências.
Perante os factos em tribunal, já era de esperar, o réu saiu absolvido para bater sola mais descansado...
Sempre há cada caso...

06 maio 2006

SÃO SORTES...

Há hábitos que nunca mais se perdem, são companheiros nossos que muito estimamos, e, satisfeitos, acarretamos, pela vida fora, toda a sua carga emotiva, como se fossem pedaços de nós; e eu pergunto, meus amigos, se não são mesmo pertença nossa? Julgo que sim.
Será por isso esta afeição muito especial que tenho a tudo o que me vem parar às mãos: seja um panfleto, que me cai na caixa do correio, que leio e releio, antes de o deitar fora; seja a despesa de um pertence para a casa, que fica uns tempos na gaveta; seja, enfim, um parafuso, uma porca, meia dúzia de pregos, que restaram de um conserto, que podem dar jeito para outra ocasião. Olhem, tudo guardo, para, de tempos a tempos, numa limpeza geral, ir quase toda a mixórdia para o rol do esquecimento e, só depois, merecer aquele destino fatal – o lixo, e, mesmo assim, com pena.
Com isto, não estou a aliciar ninguém para fazer parte desta maluqueira de guardar toda a sorte de ninharias; apenas são desabafos meus, que gosto de partilhar com os amigos.
Eu nasci assim, eu cresci assim, eu vou ser sempre assim, como a Gabriela, do Jorge Amado – está escrito...
E, reparem, quem sai aos seus, fica-lhe muito bem conservar a sua memória – acima a tradição, como cantava o Anthony Quin em Zorba, o Grego, lembram-se?
Como podia eu não sair à minha mãe, que me guardou os canudos louros na tal caixa de sabonetes “Violeta”, de que, há tempos, vos falei? Sabe mesmo bem quando seguimos as pisadas dos nossos, sentimo-nos mais perto deles.
Diria que não há maior gosto na vida do que sermos igualzinhos a nós próprios, com aquela marca indelével do sangue, e nunca aparentar meros decalques de uma qualquer figura de proa. É tão bom não termos de nos submeter a regras que não se ajustam ao nosso jeito de ser.
Deixemos correr o marfim, com aquela cor de alabastro antigo, que lhe fica tão bem. As pequenas coisas, tal como elas são, assim simples, maneirinhas, têm aquela candura de um primeiro amor, um quê muito característico, que se agarra a nós só por uma questão de bem-querer.
Portanto, estamos entendidos, cada um faça como quiser, desde que se veja sempre ao espelho e guarde o melhor que tenha, para, um belo dia, deixar-se seduzir por um qualquer papel velho, ou, de outro modo, poder fruir o ensejo de uma surpresa, e, se boa, tanto melhor.
Contas feitas e acertadas, vamos, então, ao que trago hoje na manga.
Pois, estava eu no bem-bom da Madeira, já lá vão quase trinta anos, tentando a minha sorte nas máquinas de moedas do Casino, quando uma carrada delas – um jakpot – caiu só para mim. Feliz, e com a prudência dando ordem de parar, fui trocar o talão por notas do banco, que o empregado mas entregou dentro de um envelope, e que eu guardei no casaco.
Era o último dia daquela semana de férias no hotel Girassol. Casaco para dentro da mala, mala para dentro do taxi e a Madeira a perder-se, rapidamente, das nossas vistas, com o avião a desembaraçar-se das nuvens, e logo o sol a raiar bem no pino do meio dia.
Chegados a casa, todas as atenções foram para o nosso menino de colo, mimos para a família, e roupa para o guarda-fatos. Estava feita a festa, férias acabadas, o trabalho à nossa espera e o casaco esperando a sua sorte do Verão seguinte. Tal e qual.
Os Santos e o Natal, a Páscoa e o Senhor Santo Cristo eram festas de outros agasalhos, que não aquele casaco leve, desforrado.
Um ano depois, o casaco bege foi despertado da longa soneca, e – imaginem o meu espanto –, quando dei pelo tal envelope com o timbre do Casino da Madeira, “é o dinheiro do jakpot!”, gritei, e fomos comemorar em grande.
Foi como se, num repente, tivesse tornado atrás um ano, voltasse a escorregar nos carrinhos do Monte e, para pasmo dos presentes, aterrasse bem no meio do Casino, para reviver o som das alegres campainhas, anunciando o “jakpot”.
São sortes... lá isso são...

05 maio 2006

À TERRA AONDE FORES TER

“Num país tão seco e caótico,
a linguagem quebra-se contra altas vedações e barreiras”

Maria Gabriela Llansol

Exactamente isso; é como vos digo, não vale a pena ignorar, cumpram esse ditado, escrupulosamente, “faz como vires fazer”, dizia o saudoso padre Rebelo, nas suas apreciadas aulas de Moral, ele que agora é, há três anos, um bom vizinho de memórias.
E entre a bondade da sua palavra e os desígnios de Deus, que tanto sublimava, metia uma pequena história, certamente para nos cativar – a do ovo e da galinha – porventura a mais badalada pela rapaziada, um ou outro episódio rocambolesco, enfim, muita coisa tinha o professor para contar.
As histórias de reis, e outras figuras graúdas da cena mundial, faziam as suas delícias. Recordava ao pormenor, como se a tivesse presenciado, a visita régia de D. Carlos, “ a rainha D. Amélia era mais alta do que o rei...”, gracejava.
E descrevia uma digressão que o rei Eduardo VII, muito viajado pelo império britânico, fizera por terras africanas, “era um soberano afável, elegante, um grande desportista, enquanto príncipe de Gales...”, e aclarava melhor o pormenor do estatuto de príncipe, não fossemos nós pensar que o monarca apenas se ocupava dos assuntos atléticos.
Ora, a história referia-se a um festim, oferecido por um alto dignatário dos seus domínios. Banqueteavam-se as criaturas com as melhores iguarias, “e quando chegou a hora da galinha, toca o régulo e seus seguidores, de atirar os ossos para trás...”, logo apanhados pela inúmera criadagem em redor.
Incrédulos com o insólito, ”ó senhor padre, isso é mesmo verdade?”, perguntava alguém na sala, ”sim, sim”, asseverava ele, como se fora um dos convivas presentes na boda.
Bem, uma coisa assim, quantas vezes excêntrica, acrescida do exotismo da batucada, fez sua Alteza pensar duas vezes, “o rei olhou à volta, desfez-se dos pruridos da corte, a muitos dias de viagem dali, e arremessou a ossada...”, pelo que foi muito aplaudido pelos circunstantes, isso contava o mestre, sempre bem informado. E assim fiquei a conhecer quem dera o nome ao famoso parque da Capital.
O presbítero – estou a vê-lo a caminho do Liceu – de riso fácil, barriguinha cheia, o passo miudinho, ligeiro, rematou a cena, algo caricata, “pois é, meus amiguinhos, à terra aonde fores ter...”, e mais uma aula chegava ao fim.
Muitos anos depois, e bem arredado dos domínios de sua majestade, digamos que aqui entre portas, porque, nas distâncias comparadas, podemos dizer que a ilha de Jesus é duas ruas aqui ao lado – ali para as bandas dos poentes de Anthero –, o incrível tinha de acontecer.
A nossa irmã Terceira, catita, vaporosa que é, de lilás vestida, parece ter, eternamente, umas contas a acertar com a mana mais velha, com aqueles amuos que lhe dá, de vez em quando, e que vêm, é o que dizem, ainda dos tempos de escola...
Andava o meu bom irmão Victor, sequioso pela soleira de uma tourada à corda, e que tal uma loirinha? entrou numa tasca da Silveira, “uma Melo-Abreu, por favor”, esperando ser servido, prontamente; não era ele um forasteiro, a quem se devia dar melhor atenção?
Isso é que era bom... Se sede tinha, ficou ainda mais seco com a resposta pronta do tasqueiro, “uma Melo-Abreu? vai beber essa coisa para a tua terra”, e ponto final.
Mas o meu irmão, tentando afogar a sede, entre tábuas, e ensaiando um sotaque rabo-torto, “ó homem, dê-me de outra marca”, e o taberneiro, tipo gado bravo, investiu, ”já te disse, vai para a tua terra, aqui não tomas cerveja nenhuma”, e ponto final, parágrafo.
Vejamos o que dizem os antigos: antes um mau ano do que um mau vizinho e é verdade. Virou ele costas aos impropérios do rezingão, entrou na tasca em frente, afinou uma voz simpática, que a sede era já muita, “uma cerveja, por favor”, o bem-humorado bodegueiro, animado com a festa brava, e melhor, com a tasca cheia, “sai uma imperial para este nosso São-Miguel!”, e assentou a mão gorducha no ombro do meu saudoso irmão Victor.
Em boa verdade, nos dizeres de D. Gabriela, “num país tão seco e caótico, a linguagem quebra-se contra altas vedações e barreiras”, e digam lá se o bom padre Rebelo não tinha, também, razão, “à terra, aonde fores ter, faz como vires fazer” – nem mais...

04 maio 2006

A esfíngica figura do senhor Pedrinho

Já há muito tempo que tenho este apontamento de lado, e chegou a hora de espairecer essa bendita alma do senhor Pedrinho. É uma coisa é outra, vai uma fala disto outra daquilo, e o borrão amarrotado, aqui no computer, parecia não querer sair do casulo.
E, hoje sim, o enrugado vai ter o apreço da serventia; está decidido, vou dar um abanão a esse sujeito, que não conheci – a esfíngica figura do senhor Pedrinho.
Ora, essa enigmática criatura, natural de Santo António, muito para cá do Nordeste, digamos que um pouco além das Capelas, e antes da Bretanha dos Capetos – desculpem-me os de cá, mas tenho que situar uns leitores do Pico e de São Jorge –, fez as mentes amedrontadas do meu saudoso irmão Victor e da mulher.
E logo no primeiro dia de escola, em 1960, “ai senhor professor, dizem que o senhor Pedrinho aparece... naquele casarão, onde os senhores estão assistindo, lá pela noite fora...”, prevenia a contínua, ansiosa por mostrar algum cuidado com o novato casal.
E uns diziam que o sibilino se metia na dispensa, para comer do que lá havia, “se assim é, senhora professora, ele é um grandíssimo confiado...”, insistia ela, ingenuamente, fechando, ao fim do dia, as janelas da sala de aula.
Outros, que os há, julgando-se mais advertidos, neste mister de almas do outro mundo, “não, senhor professor, o que a minha bendita mãe nos dizia é que ele se enfiava no quarto de dormir dos netos”.
E o vizinho, meio perturbado, já se vê, “que isto me custa a crer, mas é o que se dizia no tempo”, e a minha cunhada, ao lado, ria-se, de amarelo, “no meu quarto de cama, credo!”, pois, às tantas, o homenzinho, se calhar, sentia-se desconsolado, e que tal o conchego dos cobertores quentes, que a tumba era mesmo regelada...
Quer na dispensa, quer no quarto de dormir, o senhor Pedrinho jamais molestou os novos inquilinos. E o meu irmão, na primeira visita que lhe fizemos, caçoando daqueles dizeres, “até aqui, o fabiano tem sido uma pessoa acomodada”, e, se se passeava pela casa, subindo escadas até ao torreão, nunca ele se topou com a esfíngica personagem, tão-pouco a bondosa minha cunhada deu por falta de bolachas na dispensa, se bem que andasse de olho nele....
Mas o casarão, sendo enorme – só a cozinha dava para se jogar à cabra-cega –, deixava-se atravessar, nos seus sete quartos, por muitas dúvidas, e não era para menos.
E há sempre um dia que as coisas se toldam, “menina Teresinha, eu quero voltar para a Vila”, implorou a empregada, que dormia no torreão, "ó rapariga, e tu ainda acreditas nisso...”, sossegou minha cunhada.
Uns tempos depois, pareciam as coisas mais dormentes, a Maria do Rosário resolvera ficar, e o senhor Pedrinho, em boa verdade, não parecia mais do que uma figura imaginária – melhor assim.
As contínuas da escola e algum vizinho, mais atento ao carpir de fantasmas, querendo fazer crer que a casa era mesmo assombrada, ainda tentaram a sua sorte, mas ficaram-se por isso mesmo, que os rendeiros da casa solarenga queriam mesmo era descanso.
O Inverno acabara desandando, mal-humorado, para outras bandas, a costa recortada vestia-se dos melhores verdes, a Primavera trazia um arejo bem gracioso e a minha cunhada, “às vezes, Victor, eu via o senhor Pedrinho, um homem magro, alto, de chapéu...”, e, pasme-se, em cima da cómoda...
Bem, valente, valente, era mesmo o cão de guarda da nossa casa, porque o meu irmão, com o astral ainda em dúvidas, “nunca te quis dizer nada, mas também mirava, naquelas noites de invernia, um homem baixote, redondo, mas sem chapéu...”, e, imaginem só, em cima do guarda-fatos...
Mas há sempre uma explicação para tudo. A alucinação da minha cunhada pendia para a sua gente, já que o pai era tal e qual – alto e seco – mas bondoso. A assombração, que o meu irmão descortinava, empoleirado no guarda-fatos, era a estampa chapada de meu pai, um rente-ao-chão, sempre desejoso por histórias do arco-da-velha.
A casa ainda lá está, altiva, afrontando o casario baixo, que lhe fica fronteiro. Se por lá ainda se passeiam figurões apocalípticos, a acertar contas antigas, um testamento dos diabos, de entre eles, certamente, o senhor Pedrinho é o primeiro da frente, na fileira das misteriosas criaturas, que assombraram alguns desprevenidos – e não só – da ridente terra de Santo António.
Mesmo assim, os meus geraram lá o primeiro filho...

03 maio 2006

OS DIZERES DE UM ARTISTA

“A vida não é o que cada um viveu,
mas o que recorda e como recorda para contá-la”

Garcia Marques

Não é todas as vezes que se vê um artista debruçar-se sobre a obra feita. E, quando fá-lo, toma as suas cautelas, não vá uma só palavra borrar a pintura.
Mas há os que, desabridamente, arrojam contra tudo e todos, na defesa daquilo que a sua real gana criou.
Conta-se que Miguel Ângelo, segundo dizia meu pai, algo alucinado com a escultura de Moisés, acabada de esculpir, desafiou a rocha trabalhada, num assomo de arrebatamento óbvio, e bradou, “fala Moisés, fala!”; ele, ébrio com os traços conseguidos, ante a rigidez estática do bloco intrépido, quedando-se num silêncio aterrador, que afrontava a ordem da alma do génio, atira-lhe o martelo à cara e quebra-lhe o nariz.
Outros há que, sempre inquietos no seu talento, depois de páginas brilhantes, vertidas em textos de rara beleza, deitam tudo a perder, rasgando, de alto a baixo, momentos altos de suas vidas.
Vida de artista é isso mesmo – é silêncio e escuridão – e nada mais; é um não caber em si de contente; é um não querer mais que bem querer; é ter de mil desejos o esplendor e não saber sequer que se deseja –, um caso muito sério...
E contou-me o meu amigo Norberto uns tais dizeres de um finório em artes muito nossas, um homem miudinho, o olhar penetrante, o pé descalço, dando alento, na prancha redonda, ao maior talento da Vila – o mestre José Batata.
E que dizeres eram, “eu já lhe conto”, e descreveu-me, com a minúcia de um bom contador de histórias, a cena, em que representavam duas pessoas: uma, vergada pelos mais de oitentas, viúva, o xaile preto a agasalhar-lhe o corpo curvado, os tamancos a matraquear na calçada, a voz sumida, “mestre José, boa tarde”, e a outra, o pé a dar a dar na roda, “ó tia Olinda, vai entrando, vai entrando”, e a pegada do mestre José Batata a dar a dar, que o dia já não é grande, não senhor, “a hora já mudou, tia Olinda”, e os dois ficaram-se em considerandos de ocasião, “esta coisa, da hora mudar, mexe comigo, mestre José”, e ele, apenas a consolou, “pois é, tia Olinda”.
E a tia Olinda, cansada da jornada, que a trouxera das bandas do Baixio, senta-se numa banca, deitando sentido nos dedos do mestre José Batata, ele que amacia a massa informe do barro húmido, “isso ainda dá o seu trabalho, mestre José”, e o pé do oleiro quedou-se, “ora se dá, tia Olinda”, e deu uma cuspidela para o chão terreiro.
Estava eu deveras agradado com a narração dos pormenores, “engraçadíssimo”, e o meu amigo Norberto, “pois, pois, estou a ver o mestre José com aquele seu jeito muito próprio...”, a contar o sucedido.
A mulher do Baixio, a tia Olinda, cerimoniosa, “queria um bacio, mestre José”, para as necessidades das noites compridas de Inverno, “estão ali, escolhe um daqueles, tia Olinda”, e a viúva deitou a mão a um, que enfiou numa saca de fardo, “vai aqui debaixo do xaile, que eu tenho vergonha de o levar assim à pamparela”.
Bem, aqui o oleiro, não vislumbrando razões de tais vergonhas, disparou resoluto, sem receios de borrar a sua obra, “tia Olinda, tira-me esse penico dessa saca que eu quero ter uma conversa com ele, antes dele se ir embora daqui”, deu mais uma cuspidela para a ilharga, ajeitou o boné na cabeça, e prosseguiu irónico, que só a alma de artista concebe, “penico, ouve meu amigo, se esta mulher de ti tem vergonha, como será, então, quando ela se sentar em cima de ti, e tu, por baixo, avistares as vergonhas dela?”.
“Ai tal mestre José...”, e a tia Olinda, com o penico bem agasalhado das bocas do mundo, se foi com os tamancos a burilar a calçada.
Então, o meu amigo Norberto, segurando o guarda-chuva, nós que saíamos de um concerto de dois saxofones – um evento raro –, na Câmara, vendo a minha satisfação, completou sorridente, “isto foi tal e qual como ele me contou”.
E não resisti a uma boa gargalhada, afiançando-lhe, “essa é uma história, que deveria merecer honras de escrita”, já que “a vida não é o que cada um viveu, mas o que recorda e como recorda para contá-la”.